Resenha de “Cada homem é uma raça”

“-A minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual. Cada homem é uma raça, senhor polícia.” (Mia Couto)

António Emílio Leite Couto, Mia Couto ( Beira, Sofala, Moçambique, 05/07/1955 ) é o escritor moçambicano mais traduzido e conhecido no mundo. Escritor de prosa e verso, com uma obra extensa, é formado em Biologia, estudou também Medicina, mas abandonou; depois entrou para a área do jornalismo. Fez parte de um grupo que lutou pela independência de Moçambique de Portugal, chamado FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique). Essas informações foram retiradas do portal Lusofonia.

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Mia Couto é moçambicano de origem portuguesa, ganhou o Camões, o prêmio mais importante da língua portuguesa e anotem aí: ainda vai ganhar um Nobel de Literatura!

“Cada homem é uma raça” é um livro composto por onze contos, antes de cada um deles existe um pequeno texto que ilustra o que vem depois.

1. A Rosa Caramela

Acendemos as paixões no rastilho do próprio coração. O que amamos é sempre chuva, entre voo da nuvem e a prisão do charco. Afinal, somos caçadores que a si mesmo azagaiam. No arremesso certeiro vai sempre um pouco de quem dispara.(p.13)

Um conto triste, lírico. A história é de uma mulher misteriosa que enlouquece por ter sido abandonada na porta da igreja. Ela tem o rosto lindo, mas o corpo é disforme, corcunda, motivo de burla desde criança. A falta de amor mata sim, se não matar o corpo (que às vezes acontece), faz morrer a alma ou o que for, mas mata. O final não é tão surpreendente, mas nem por isso o conto deixa de ser bom.

2. O apocalipse privado do tio Guegê

– Pai, ensina- se a existência.

-Não posso. Eu só conheço um conselho.

– E qual é?

– É o medo, meu filho. (p. 27)

Um homem recorda a sua infância, ele foi abandonado pelos pais ainda recém- nascido e o seu tio Fabião Guegê o toma para criar. O tio nega os valores tradicionais de família, mas ainda assim acolhe uma outra sobrinha, Zabelani, da idade do menino. O tio é cheio de mistérios, soldado da milícia, sempre ausente.

(…) A melhor família qual é? São os desconhecidos parentes de estranhos. Só esses valem. Com os outros, intrafamiliares, nascemos já com dívidas. (p.36)

O jovem casalzinho apaixona-se, têm relações sexuais e o tio manda a menina embora. O homem mesmo sendo soldado, ensina e ordena que o menino a roube. O sobrinho faz muitas maldades, aprende. Cresce, vira também soldado e ladrão, como o tio. “Os amores enfraquecem o homem”, diz o tio. Esse é um conto triste, trágico, que faz pensar no drama das relações familiares. Às vezes é melhor estar sozinho.

3. Rosalinda, a nenhuma

É preciso que compreendam: nós não temos competência para arrumarmos os mortos no lugar eterno (…) (p. 49)

Esse conto é sobre a viúva Rosalinda, que engordou por desleixo, esqueceu de si mesma depois da morte do marido e fica mascando “mulala” (uma raíz que deixa a boca alaranjada). Eu não gostei de uma comparação que Mia colocou na boca do seu narrador sobre a obesidade feminina, compara essas mulheres com a calma bovina, como se fossem obesas por gosto, como se não as incomodasse, nem mesmo a vida as incomoda, como se a obesidade também tirasse a capacidade de desacordo com as coisas da vida, a gordura traz o comodismo, o que é muito distante da verdade. Se ele falasse só de Rosalinda, tudo bem, mas generalizou:

(…) As mulheres gordas não zangam a vida: fazem lembrar os bois que nunca esperam tragédias. (p.51)

Literatura serve para muita coisa e para isso também, para indignar. Quanta gente deve pensar assim como esse narrador, não é? Não confundam o narrador da história com o Mia Couto, a voz do narrador é fictícia, não é o escritor.

Rosalinda carrega infinitas tristezas, a morte de todos os parentes, está sozinha, faz visitas ao cemitério num clima de muita tristeza. O marido falecido era alcoólatra, mulherengo e batia na mulher. Jacinto nem a chamava pelo nome certo, ela era Lauridinha, Laurinda, a outra, que apareceu no dia da morte do homem e ainda teve que disputar o túmulo de jacinto com a outra, a Dorinha. O marido dizia:

– Teu nome, Rosalinda, são duas mentiras. Afinal, nem rosa, nem linda. (p.54)

A submissão e o desejo de ser amada de Rosalinda a fez aguentar tudo. O amor que não é amor, é outra coisa nem menos saudável. Rosalinda encontrou uma forma inusitada de vingança e foi aí que passou a ser nada mesmo.

4. O embondeiro que sonhava pássaros

Pássaros, todos os que no chão desconhecem morada. (p. 61)

O vendedor de pássaros não tem nome, é só o “passarinheiro”. Os colonos do lugar colocam medo nos filhos, plantando desconfiança em relação à alegre presença do vendedor, o chamam de “preto” despectivamente, dizem que ele “suja o bairro”. Tiago, um menino sonhador, desobedece às ordens do pai e vai ver o passarinheiro, que traz aves de infinita beleza. Os portugueses incomodados com a presença feliz do negro, como ele se atreve a existir?! O homem mora num tronco de árvore, um embondeiro, dizem, tem poderes sobrenaturais; gaita do homem, também. O velho passarinheiro é espancado e preso. Seu crime? Ser negro, simples e feliz. O final de Tiago é um poético triste final.

5. A princesa russa (p.73)

Um conto racial sobre a desigualdade entre negros e brancos. Essa história começa com uma confissão sobre o passado numa igreja. Uma russa chamada Nádia chega na vila de Manica, uma princesa que chega com o marido Iuri. O marido compra umas minas de ouro, esperando ficar rico. O confessor é um empregado coxo e negro do casal, Duarte Fortin. A princesa sempre reclusa na sua casa cheia de luxos e o marido nas minas. Um dia ela visita as instalações onde dormem os empregados e fica horrorizada com a pobreza. A mina desaba, Fortin e os outros empregados da casa foram ajudar no resgate. Fortin desiste, não aguenta assistir aos corpos mutilados. A princesa deixou seu verdadeiro amor, Anton, na Rússia e adoece. Delirando, a russa pede a Fortim que a leve à estação para buscar Anton. Fortin deseja a princesa, sonha com ela, desvia o caminho para a beira do rio, quer se fazer passar por Anton e a deixa ali, deitada, na beira do rio. O conto é fantástico, um dos mais impressionantes.

6. O pescador cego

O barco de cada um está no seu próprio peito. (Provérbio macua) (p.95)

Eu tenho que reproduzir o primeiro parágrafo que dá o tom do texto inteiro, veja a beleza da escritura existencialista de Mia Couto:

Vivemos longe de nós, em distante fingimento. Desaparecemo- nos. Porque nos preferimos nessa escuridão interior? Talvez porque o escuro junta as coisas, costura os fios do disperso.No aconchego da noite, o impossível ganha a suposição do visível. Nessa ilusão descansam os nossos fantasmas. (p. 97)

Esse conto é todo bonito e triste, daqueles que encolher o coração. É a história de um pescador, Maneca Mazembe, que ficou cego de uma maneira escabrosa, arrancou o próprio olho com uma faca e o espetou num anzol para poder pescar em alto- mar e poder comer. A fome enlouquece. Um olho por um peixe! A normalidade na família de Maneca era o machismo com a mulher Salima, que sentiu até falta do marido quando deixou de surrá- la. Maneca não admitia que Salima saísse para pescar agora que ele já não enxergava.

Muitas vozes, afinal, só produzem silêncio. (p. 97)

7. O ex- futuro padre e sua pré- viúva

A vida é uma teia tecendo a aranha. Que o bicho se acredite caçador em casa legítima pouco importa. No inverso instante, ele se torna cativo em alheia armadilha. Confirma- se nesta estória sucedida em virtuais e miúdas paragens. (p.107)

O menino Benjamim Katikeze vivia na igreja, nem queria brincar, era um aprendiz dedicado, queria ser padre. Cresceu e aparece Anabela, “anabelíssima”. Ela não queria nenhum outro, só o recatado Benjamim. Ela dava em cima do moço, mas ele resistia sob os olhos incrédulos dos homens da cidade. O pai da moça, Juvenal, foi remediar a situação e bateu na porta de Benjamim para marcar a data do casamento. Casaram. “Ele maridou- lhe, mas não exerce a soberania.” Xiiiiiii! Será feitiço?

8. Mulher de mim

O Homem é o machado; a mulher é a enxada. (Provérbio moçambicano)

Esse é o conto mais hermético e místico, acontece num mundo paralelo, onírico, o mundo dos mortos e dos vivos que formam “uma só tela”. Um homem que sonha e encontra- se uma mulher que quer nascer nele. A reencarnação?

9. A lenda da noivo e do forasteiro

Eis o meu segredo: eu já morri. Nem essa é a minha tristeza. Me custa é haver só uns que me acreditam: os mortos. (p. 131)

Um forasteiro chega com seu cachorro numa terra distante e provoca muita desconfiança nos locais, o intruso passa a estar na boca de todos. O cão não late, pia e dizem solta uma baba verde, ácida. Começaram a desaparecer coisas no lugar e os moradores acharam uma solução inusitada para resolver o problema com o estrangeiro. Jauharia serviu de oferenda ao forasteiro, só uma mulher bela poderia acalmar o forasteiro, pensaram. Ela era noiva de Nyambi. O conto possui um tom de lenda, sobrenatural, a noiva sumiu e, dizem, foi o estrangeiro que a sorveu, quando ela transformou- se em água.

10. Sidney Poitier na barbearia de Firipe Beruberu

Império: em pé, rio a bandeiras despregadas. (p.147)

A barbearia de Firipe fica debaixo de uma árvore. O barbeiro é boa praça, adora distribuir “dákámaus” (apertos de mãos), sempre sorridente e se gaba de já ter cortado cabelo fino de branco. E os amigos não acreditam que ele é um barbeiro de elite. Firipe mostra um postal de Sidney Poitier e diz que foi cliente seu. E os amigos continuam sem acreditar, como é que um moço americano e rico iria numa barbearia dessas? O conto inteiro passei sorrindo, mas no final, um murro no estômago.

11. Os mastros do Paralém

Só um mundo novo nós queremos: o que tenha tudo de novo e nada de mundo. (p. 165)

Constante Bene e seus filhos, Chiquinha e João Respectivo, estão presos na cabana em casa há dezessete dias por causa da chuva. São caseiros de um sítio nas montanhas, Paralém, chamam assim o lugar, pois têm medo de ultrapassar o outro lado da montanha. Passa um mulato, só passou, não pediu abrigo. O homem é um guerrilheiro. O pai (Contante Bene) teve um mau presságio que mais tarde se confirmou. O pre- julgamento que causa injustiças.

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Um livro que emociona, que trata de gente “comum” (extremamente complexa e surpreendente) e seus sentimentos, pessoas com um pé na Terra e outro no Céu. Um mundo inteiro em cada uma delas. A linguagem usada deu uma personalidade única a cada personagem dos contos, são sui generis. Nota- se a origem africana do escritor, mas em nenhum momento o livro tornou- se ininteligível, o escritor encontrou um ponto de intersecção, onde todos os leitores lusófonos podem entender a idiossincrasia dos narradores e personagens, exceto nos diálogos dos locais como no conto de Sidney Poitier, que só com dicionário mesmo. Apareceram palavras africanas, mas com a devida tradução nessa edição portuguesa. Novos vocábulos, novos conhecimento, maior a riqueza cultural. Ficou claro que o sobrenatural, o místico, a superstição, feitiços e feiticeiros, fazem parte da cultura moçambicana. Mia é um grande contador de histórias, ele soube nesses contos escolher bem as palavras, com frases surpreendentes e inovadoras, algumas trocas sintáticas interessantes. Infelizmente num blog, querido leitor, a análise dos contos tem que ser assim macroscópica, só posso dar uma ideia, mas os contos de Mia dão muito pano pra manga. “Cada homem é uma raça” é o tipo de livro que fiquei com pena de me despedir, entrou para os meus favoritos.

Fonte indicada: Falando em Literatura