Mia Couto responde a interessantes perguntas, no Fronteiras do Pensamento/2014

No Fronteiras do Pensamento São Paulo, o escritor moçambicano Mia Couto escolheu, como título de sua fala, A peneira e a água, em alusão ao poema O menino que carregava água na peneira, de Manoel de Barros. Segundo Couto, esta é a melhor definição de poeta: aquele que transporta água com uma peneira.

Em sua conferência, Mia Couto falou sobre histórias e memórias, algo que, de acordo com ele, é uma espécie de “conjugação de impossibilidades”. O escritor, que se considera antes de tudo um poeta, explicou com versos escritos sobre o tema:
“De que vale ter memória
se o que eu mais vivi
foi o que nunca se passou.”

Mia Couto também criticou a ideia de memória enquanto lembrança factual de eventos passados. Para ele, esta visão dissocia memórias e História, colocando as memórias ao lado da natureza e as histórias ao lado da cultura. Para Couto, esta separação é “duplamente equivocada”. Primeiro, porque “ninguém sabe exatamente o que é natureza humana, nós somos em grande parte inventores da nossa própria natureza”. Segundo, porque criar histórias pode não ser algo cultural, “pode ser algo tão biológico como a ansiedade de comer e de beber. A fantasia está nos nossos genes desde que somos quem somos.”

Na iniciativa da Braskem, patrocinadora dos canais digitais do Fronteiras do Pensamento, perguntas de todo país foram enviadas pelos seguidores do Fronteiras para Mia Couto através do e-mail digital@fronteiras.com. Após a conferência, o convidado respondeu a Pergunta Braskem de Ricardo Coelho. Confira abaixo:

PERGUNTA BRASKEM
“O que é o Brasil para o homem comum de Moçambique, de crenças e culturas diferentes, que ‘aceita a existência de deuses plurais e a existência de animais que têm alma e que partilham (consigo) o sagrado e o profano’, expressando, possivelmente, mais sabedoria que o homem comum brasileiro?”

RESPOSTA DE MIA COUTO
“Bom, eu não sei se podem ser comparadas sabedorias. Mas, a sabedoria que os moçambicanos desenvolveram serve para o seu próprio mundo. E a que os brasileiros criaram no Brasil serve para a realidade brasileira. É só para que eu não fizesse minha essa forma de colocar a coisa.

Mas, o que é o Brasil? Quando chego ao Brasil, a impressão imediata é que existem outros Brasis que não é aquele que chega a Moçambique. Não é aquele que é exportado, que é um Brasil muito simplificado, muito reduzido. Como se todos os brasileiros vivessem bem e fossem de uma só raça.

Bom, é um Brasil que lhe falta uma grande parte do Brasil e, portanto, a primeira sensação é que nós estamos realmente chegando a alguma coisa que tem outras verdades, que tem essa grande diversidade, que é um Brasil muito plural.

Mas, há uma coisa que eu tenho que dizer: quem vem da África encontra a África no Brasil a níveis que não são estes imediatos. Não é porque encontra gente de certa cor de pele. Não é porque encontra gente de certo tipo físico, mas é porque permeia toda a sociedade brasileira certa ideia de tempo, certa ideia de corpo, certa ideia de convívio. Essa fronteira entre rua e casa ainda está presente mesmo nas grandes cidades brasileiras. Há aqui qualquer coisa que nos faz pensar muito em casa.”

Mia Couto respondeu diversas perguntas do público após sua fala. Veja abaixo os principais temas abordados e as respostas do convidado:

Mia Couto sobre crença e fé
“Sou um ateu, mas sou um ateu não praticante. Significa que eu não tenha tanta crença assim, porque, para ser ateu militante, eu teria que ter uma crença maior que também não tenho. Estou aberto a escutar outras crenças e a ter essa relação com aquilo que, sendo eu um cientista, me faria perdido. Eu sou muito disponível para aquilo que é o lado misterioso, inexplicável.”

Mia Couto sobre o lado feminino
“Quando eu me coloquei essa tarefa de escrever um personagem feminino, eu pensei que faria isso porque entrevistaria mulheres que contariam histórias, mas o modo como fiz esse caminho foi um modo interior. Foi um modo por dentro. Eu pensei: dentro de mim tem que estar esse lado feminino, esse lado mulher, e eu tenho que ter uma relação com proximidade. Não tenho que ter medo.”

Mia Couto sobre memórias e esquecimentos
“Esquecer é quase tão mentira quanto lembrar. Nós temos, em relação ao esquecimento, a ideia de que se trata de alguma coisa que acontece do ponto de vista neurológico, em um lugar qualquer onde as coisas se dissolvem e se afundam. Isso é verdade, sim, mas não é só isso.

O esquecimento é um trabalho ficcional. É preciso que essa história seja coberta por outra. O silêncio sobre o qual deitamos o passado é um silêncio que mente. Há qualquer coisa que fala sempre.”

Mia Couto sobre as fronteiras entre prosa e poesia
“Essas fronteiras, pelo menos para quem está do lado da produção, quem faz prosa ou poesia, são praticamente impossíveis de definir com esse rigor. Eu não consigo. Eu acho que estou sempre do lado da poesia.”

Mia Couto aconselha novos escritores
“Nunca olhar para alguém como um escritor experiente. Não existe isso. Nenhum escritor tem experiência. Escrever é uma coisa próxima de amar, nunca se tem experiência em amar. Ama-se sempre pela primeira vez e com risco, com esta coisa que parece que é a última vez.

Há vários jovens que batem à porta em Moçambique porque estão em uma situação muito solitária e não tem a quem apresentar os seus textos e falo muito com eles.

Uma das coisas que eu noto é que ficam prisioneiros de uma coisa que ninguém sabe exatamente o que é, que é ‘escrever bem’. Eu acho que essa é uma coisa que a escola, no sentido convencional da relação com a língua, com a GRAMÁTICA, pode matar um menino que fica com medo de errar. E ninguém escreve se tiver medo.”

A Braskem patrocina os conteúdos exclusivos dos canais digitais do Fronteiras do Pensamento.
Publicação original: http://www.fronteiras.com/