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Mia Couto, em conferência, fala sobre “Repensar o pensamento”

Mia Couto, ao afirmar que o pensamento não tem fronteiras, diz que o pensamento existe para rivalizar com o sonho, na “viagem do impossível”.

No Fronteiras do Pensamento, 2012

A Morte, o Tempo e o Velho

O homem se via envelhecer, sem protesto contra o tempo. Ansiava, sim, que a morte chegasse. Que chegasse tão sorrateira e morna como lhe surgiram as mulheres da sua vida. Nessa espera não havia amargura. Ele se perguntava: de que valia ter vivido tão bons momentos se já não se lembrava deles, nem a memória de sua existência lhe pertencia? Em hora de balanço: nunca tivera nada de que fosse dono, nunca houve de quem fosse cativo. Só ele teve o que não tinha posse: saudade, fome, amores.
Como a morte tardasse, decidiu meter-se na estrada e caminhar ao seu encontro. Tomou a direcção do oeste. Na sombra desse ponto cardeal, todos sabemos se encontra a moradia da morte.
Iniciou a sua excursão rumo ao poente sem que de ninguém se despedisse. Os adeuses são assunto dos vivos e ele se queria já na outra vertente do tempo. Caminhava há semanas quando avistou um homem alto, um rosto de enevoados traços. Trazia pela trela um bicho estranho, entre cão e hiena. Animal mal-aparentado, com ar maleitoso.
– Esta é a morte – disse o homem apontando o cão. E acrescentou – Sou eu que a passeio pelo mundo.
– E você quem é?
– Eu sou o Tempo.
E explicou que caminhavam assim, atrelados um ao outro, desde sempre. Ultimamente, porém, a Morte andava esmorecida, quase desqualificada. Razão de que, entre os vivantes, se desfalecia agora a molhos vistos, por dá cá nenhuma palha. Morria-se mesmo sem intervenção dela, da Morte.
O velho, desiludido, explicou ao Tempo a razão da sua viagem. Ele vinha ao encontro da Morte:
– Eu queria que ela me levasse para o sem retorno.
– Vai ser difícil.
– Lhe imploro: fiz todo este caminho para ela me levar.
– Veja como ela anda: desmotivada, focinho pelo chão.
– Mas eu queria tanto terminar-me!
Impossível, insistiu o Tempo. E para comprovar, soltou o animal. O bicho se afastou, arrastado e agónico, para o fundo de uma valeta. Ali se enroscou decadente como um pano gasto. O velho se condoeu e perguntou ao bicho:
– O que posso fazer por si?
– Eu só quero beber.
Não era de água a sua sede. Queria palavras. Não dessas de uso e abuso nas palavras tenras como o capim depois da chuva. Essas de reacender crenças. O velho prometeu garimpar entre todos os seus vocabulários e encontrar lá os materiais de reacender o mais perdido fôlego. Urdia, seu secreto plano: iria ao sonho e de lá retiraria uma paixão de palavras.
Na manhã seguinte, foi de encontro à besta moribunda. O bicho estava agora mais hiena que cão. Uma baba amarela lhe escorria pelo focinho. Apenas revirou os olhos quando sentiu o homem se aproximar.
– Trouxe?
E ele lhe entregou o sonho, as palavras, mais seu inebriamento. O animal sugou tudo aquilo com voracidade. Seus olhos eram os de uma criança sorvendo estória antes do sono.
E assim se seguiram durante umas manhãs. Em cada uma, o velho se anichava e confiava seus elixires. De cada vez, o bicho se animava mais um pouco. No final, a Morte se recompôs com tais pujanças que o velho ganhou coragem e lhe apresentou o pedido, seu anseio de que o mundo se lhe fechasse. A Morte escutou o pedido de olhos fechados.
– Amanhã vou cumprir o meu mandato – anunciou ela.
Nessa noite, o velho nem dormiu, posto perante a sua última noite. Sentindo-se derradeiras, passou em revista a sua vida. Nos últimos anos, ele tinha perdido a inteira memória. Mas agora, naquela noite, lhe revieram os momentos de felicidade, toda a sua existência se lhe desfilou. e sentiu saudade, melancolia por não poder revisitar amigos, terras e mulheres. até lhe assaltou a ideia de escapar dali e reganhar aventuras no caminho da vida. Para não ser atacado por mais recordações – com o risco do arrependimento – ele foi ao rio e caminhou ao sabor da corrente. Andar no sentido da água é o modo melhor para nos lavarmos das lembranças.
No dia seguinte, o velho foi à valeta onde encontrou a Morte. Ela estava cansada, respiração ofegante. E disse:
– Já matei.
– Matou? Matou quem?
– Matei o Tempo!
E apontou o corpo desfalecido do homem alto. A hiena, então, estendeu a trela ao velho e lhe ordenou:
– Agora leva-me tu a passear!

Conto extraído do livro “Na berma de nenhuma Estrada”, da Editorial Caminho.

Mia Couto é um dos autores do Hino Nacional de Moçambique. Já conheces o Hino?

Mia sempre diz, em suas entrevistas, acerca da sua participação na composição do Hino Nacional de Moçambique.
Abaixo, segue a letra do Hino e, no vídeo, o Hino entoado..

Hino de Moçambique

Pátria Amada

Na memória de África e do Mundo
Pátria bela dos que ousaram lutar
Moçambique, o teu nome é liberdade
O Sol de Junho para sempre brilhará

(2x)

Moçambique nossa pátria gloriosa
Pedra a pedra construindo um novo dia
Milhões de braços, uma só força
Oh pátria amada, vamos vencer

Povo unido do Rovuma ao Maputo
Colhe os frutos do combate pela paz
Cresce o sonho ondulando na bandeira
E vai lavrando na certeza do amanhã

(2x)

Moçambique nossa pátria gloriosa
Pedra a pedra construindo um novo dia
Milhões de braços, uma só força
Oh pátria amada, vamos vencer

Flores brotando do chão do teu suor
Pelos montes, pelos rios, pelo mar
Nó juramos por ti, oh Moçambique
Nenhum tirano nos irá escravizar

(2x)